Parece que o metaverso ainda não chegou lá. Lá onde?

Eu gosto de discutir futurismo. É o meu equivalente aos debates de futebol: “fulano deveria ter escalado ciclano!”, “Não é possível, esse cara é pago pra bater um escanteio desse jeito? O Zé da kombi bate melhor!”. Mas será que bate mesmo? Esse papo de futurismo, principalmente em plataformas movidas a audiência (engajamento, like e compartilhamentos), gera muito pano pra manga. Assim como no mundo da bola onde todo mundo é o técnico que vai guiar a seleção pro hexa, o mundo da tecnologia está cheio de especialistas em futuro. Quando discutimos paixões, é difícil enxergar e argumentar com razões. Quem aqui já viu corintiano aceitar o mau desempenho numa partida como algo que poderia acontecer mesmo com o time jogando bem? Palmeiras vem colecionando títulos, mas não faturou o mundial, o que fazer? “Esse técnico estrangeiro é uma piada”, “time de pipoqueiros” etc. O nosso mundo de pequenos textos e frases de impacto tem pouco espaço pra análises mais sérias e profundas.

Tenho visto recentemente a repercussão sobre metaverso e os excelentes palpites que vem sendo compartilhados sobre o assunto. Muitos em forma de críticas. Algumas boas, outras tão boas quanto meus palpites como técnico do Corinthians. Algumas das que vi dizem que “ainda não chegamos lá”, outros disseram que depender de um “trambolho” como um óculos de realidade virtual é uma piada. Calma. Vamos por partes? Prometo ser (relativamente) breve e acrescentar algumas informações que podem ser úteis de verdade para esse debate.

Para aqueles que dizem que ainda não chegamos lá, eu queria entender duas coisas: o que ainda não chegou lá? Onde é “lá”? Nesse mundo rápido, curto e líquido, uma boa definição ajuda a nos localizarmos e falarmos a mesma língua. O que é metaverso pra você? É um óculos de realidade virtual? É fazer reuniões online com bonequinhos avatares bonitos? Comprar um boot maneiro, caro só que “de mentira”? Nesse vídeo curto da BBC [1] um funcionário da Meta (ex-Facebook) faz uma explicação curta (em inglês): o metaverso é uma construção espacial, diferente da experiência 2D, mais linear, da web tradicional e não significa, necessariamente, realidade virtual. Ora, a própria Meta, dona do equipamento e pioneira no debate público estabelece que o metaverso não é a mesma coisa que realidade virtual. O argumento do “trambolho” acaba de ficar mais fraco. O termo “metaverso” não é dotado de um significado único, ainda mais nos dias de hoje [2]. Pra opinar na escalação do time precisa saber conhecer pelo menos o nome dos jogadores, certo?

“Ainda não chegamos lá”. Sempre me pergunto se “lá” é um lugar, ou momento no tempo.  O que precisa acontecer para chegarmos a conclusão de que “chegamos lá”? Como é o mundo onde o metaverso já se faz presente? Um mundo onde interações imersivas acontecem virtualmente entre pessoas com avatares engraçadinhos? Um mundo conectado onde diversos tipos de transações acontecem entre sistemas diferentes? Um mundo onde existe um dispositivo que literalmente te dá a sensação de estar em um outro lugar? Qual é a métrica que estamos buscando aqui? Número de usuários? Número de devices vendidos? Tamanho de mercado? De novo, por partes. Todas as afirmações feitas nesse parágrafo já acontecem com naturalidade. Você pode detestar aquele casal que decidiu casar no metaverso, mas uma criança já prefere uma festa de aniversário no Roblox do que presencial [3]. Imersão e realismo não são características absolutas. São valores relativos. Nada é realista, algo sempre é mais, ou menos, realista do que outra coisa. Que divertido, o metaverso tem sua própria teoria da relatividade. “Ah, mas só um público restrito se adaptou”. Tudo bem, pode ser verdade. Quantas pessoas precisam se adaptar para considerarmos um grupo “não restrito”? Alguns dados relacionados exclusivamente ao trambolho, digo, a realidade virtual [4]:

  • É esperado que o mercado global de AR/VR cresça para algo próximo a 200 bilhões de dólares em 2022;

  • O faturamento global de vendas de jogos de realidade virtual foi de 22.9 bilhões de dólares em 2020;

  • Existem mais de 171 milhões de usuários de realidade virtual no mundo;

  • 75% dos americanos já sabem o que realidade virtual;

  • Demanda por dispositivos standalone (como o Oculus Quest) cresceu 16x entre 2018 e 2022;

  • 14 milhões de dispositivos de AR/VR foram vendidos em 2019.

Lembrando que esses dados são sobre realidade virtual/aumentada, coisa que a própria Meta disse não ser requisito para o tal do metaverso.

Eu li há alguns meses um artigo excelente que discutia a revolução científica que foi a publicação da Origem das espécies, do Charles Darwin. O artigo era um muito interessante e discorria, dentre outras coisas, sobre se houve uma revolução e se ela foi causada por esse evento em específico. No artigo o autor apresenta uma discussão muito interessante sobre o próprio significado da palavra “revolução” e uma análise muito boa sobre a participação do Darwin e sua publicação nesse processo. Resumindo para os que não tem esse tempo todo sobrando: uma revolução é um pouco diferente do que vemos nos livros de história, onde existe uma data marcada e um acontecimento revolucionário. As revoluções são, na verdade, processos de mudança lentos e incrementais. Darwin não foi o primeiro, nem o último, a falar sobre evolução. Na mesma época que ele, outros pesquisavam e publicavam trabalhos que, inclusive, inspiraram o dele próprio. Isso não tira o mérito da publicação do livro, mas nos dá uma pista para aqueles estão buscando o grande momento bombástico do metaverso.

Por fim, pra quem curte opinião de gringo, outro artigo que traz uma explicação longa, mas muito rica sobre esse movimento de metaverso é o “Framework for the Metaverse”, do Matthew Ball [6] (agradecimento especial ao grande Silvio Meira por compartilhar). O autor faz ponderações muito relevantes e comparações interessantes desse movimento com outras “revoluções” tecnológicas.

A mudança nas formas de interação já aconteceu, os sistemas estão cada vez mais conectados, o virtual tem valor intrínseco. Vamos debater o que funciona ou não funciona nele, o que é melhor ou pior. Voltando com a comparação com o futebol, existem times bons, times ruins, mas quero ver que é que vai dizer que o futebol não existe, que “ainda não chegou lá”, ou que a televisão é um trambolho risível.

 [1] What is the metaverse? BBC News. https://www.youtube.com/watch?v=V6VsxcVpBVY

[2] What is the 'metaverse'? https://www.merriam-webster.com/words-at-play/meaning-of-metaverse

[3] The Metaverse Has Already Arrived. Here’s What That Actually Means https://time.com/6116826/what-is-the-metaverse/

[4] 45 Virtual Reality Statistics That Will Rock the Market in 2022. https://techjury.net/blog/virtual-reality-statistics/#gref

[5] The Darwinian revolution: Rethinking its meaning and significance. Michael Ruse, 2009.

[6] Framework for the Metaverse. https://www.matthewball.vc/all/forwardtothemetaverseprimer

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